segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Ensaio sobre a esperança

Às vezes, o homem encontra seu destino na estrada que pegou para evitá-lo. 



____________ * ____________





Parte I

Sabe quando já errou o bastante para

Enfim

Entender que foi feito para errar?

Talvez cometesse os mesmos erros com mais intensidade

Para se converter de vez neste monstro

O monstro que, dentro de você, não morre

Mas que, dos olhos tortos do mundo, se esconde

E sorri para o mundo cada vez que sente dor



Não adianta se arrepender

Seria um autoflagelo inútil

Basta retribuir com um sorriso

Pré-fabricado, que seja



A gente morre de dentro para fora

E luta em vão contra o medo do medo

Até aquilo do que temos medo acabar com tudo

Antes disso, termos perdido a vontade de lutar

Ou nos convencido que foi pela falta da nossa vontade

Quando foi falta de amor

Foi a falta da água de um peixe no chão seco



Não quero mais ser o que seria bom para você

Porque você nem sabe quem é você



Sou dono do meu próprio ser

E morrei comigo



O mundo não precisa de nós

Como um dia precisei de você

Em que tomei do veneno da esperança

Um veneno esquizomorfo

Na cava taça de vinho





Parte II

A esperança ébria me trouxe devaneios

Razoáveis, no entanto

Qualquer meio que usamos para sairmos de nós

Pode nos trazer para mais perto do que somos

Desde que não nos percamos

Quanto mais bebia da esperança

Mais desesperança

Pois este é o mágico poder da espera:

Compreender, cada vez mais claramente

Que não existe absolutamente nada a se esperar

E por isso mesmo esperamos

Até o mundo abaixar as portas e nos jogar na sarjeta da Eternidade

É por isso...

Andamos para a frente para olharmos para trás e vermos

Que tudo quanto deixamos foi vaidade

Foi uma vontade ingênua

Foi uma espera tênue

Angustiante

Porque esperamos sabendo que teremos justo o que não esperamos

Mas, esperamos…

Droga, esperamos!

Não um mundo perfeito

Apenas dar a hora

E voltarmos para casa sem ter apanhado nada pelo caminho

Senão deixado tudo que um dia acreditamos ter apanhado

Nem sei porque esperamos

Nem sei o que espero disso tudo

Acho que é a esperança de termos, mesmo, uma esperança

Aquela da probabilidade

Aquela que acredita no mundo material das possibilidades



A esperança é coisa de gente viva

Que espera na carne e no espírito

As possibilidades que os valham

Um é o todo, o outro é o muito pouco

O intervalo que há entre os dois é o nada

E esperar é saber que só se espera enquanto a coisa que espera

Não se esfumaça tanto quanto a coisa esperada



Esperei por você

Para quê?

Para viver?

Não se vive e não se anda sem esperar por algo enquanto se o procura?

Procurando a gente acha

Mas também se perde e se machuca

E não se acha mais nada

E se esquece pelo que se esperava

Embora, de muitas coisas, eu ainda não me tenha esquecido



Aprendi que o homem é o animal mais inteligente dentre os outros animais

Capaz de ter esperança por algo que se imagina, se lembra, se simboliza e se mitifica

Porém, sua inteligência também o fez fugir da realidade

E viver fantasias que o prenderam e o desagregaram do eu natural

E, esperando encontrar uma razão de ser deste esperar porfioso

Pus-me a pensar no que seria este animal capaz de esperar por coisas extenuantes

O homem é, pois, o animal mais inteligente; a ponto, até mesmo, de tornar-se o único capaz de enganar a si mesmo.


- Danillo Macedo -  




sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Poema de sete faces




Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do -bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

 
 De Alguma poesia (1930)
 
Carlos Drummond de Andrade

domingo, 4 de dezembro de 2016

Os mortos de sobrecasaca





Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.

Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
que rebentava daquelas páginas.

(De  Carlos Drummond de Andrade, da antologia poética de 1962; poema digitado e revisado neste blog por Danillo Macedo)

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Errar


Errar é fazer algo que não é aquilo que deveria ser feito. É fazer algo que não está na forma mais adequada para quem diz qual a forma adequada.
Mas, se a minha forma não for a forma que mais agrada a quem guarda a forma que foi estabelecida, minha forma está então rejeitada.
Mas, se a minha forma for a melhor forma, que não agrada a quem guarda a forma que foi estabelecida, porque essa forma não está ao seu alcance.
Errei! Qual é então o meu melhor ato, agora? Qual é a minha melhor atitude? Devo eu reconhecer o meu erro, ou preservar a minha forma para o local e o dia que ela for a forma de quem estabelece a forma?
Ainda resta esperar que meu irmão cuide para que eu possa preservar a minha forma e compor com ele a forma que seria a forma que demonstraria que somos dignos da vida, segundo a forma, devo dizer, que Deus nos confiou!


Poema em prosa do Prof. Dr. Sebastião Elias Milani: professor, linguista e excepcional poeta. 


Acessar: https://plus.google.com/111003418717896276958/posts/NCESCuvVdaa

terça-feira, 15 de novembro de 2016

O homem comum e o incomum



Um homem tem certas obrigações que lhes são impostas pela condição de sê-lo. Um homem deve, entre muitas outras coisas, trabalhar, andar vestido, cuidar de um certo mundo que o cerque. Todos os humanos de um modo mais geral possível, sempre estão envolvidos nesse tipo de atividade rotineira que, numa síntese ou numa generalização, os iguala. Pode-se dizer, então, que, em largas visões, os homens são todos iguais, ou melhor ainda, os humanos são todos iguais.
Numa olhada, digamos assim, mais aproximada, não muito, somente o suficiente, se perceberá uma distinção destes em algumas categorias genéricas, do tipo: homem e mulher, criança e adultos. Aproximando-se um pouco mais, pode-se observar outras categorias, aquelas distintas por preconceitos, do tipo: mais ricos e mais pobres, mais brancos e menos brancos. Mais próximo ainda, ver-se-á outras categorias de gente que se diferencia pela situação social em que se encontra, do tipo: se está de branco é da área de biológicas, se está de terno ou é advogado ou é executivo e sua variantes. Aproximando-se mais ainda, ver-se-á distinções do tipo mais bonito, mais feio, careca, gordo, magro, etc.
Nesse estágio de observação, o genérico deixa de existir, a partir desse ponto, todos são distintos de alguma maneira. Porém, esses se desnivelam por algo que não pode ser visto, pela atitude que tem em relação aos outros: alguns são capazes de ver mais além do óbvio e outros, mesmo esforçando-se, têm muita dificuldade para ver certas diferenças.
Observando uma certa categoria de gente, que não chega a ser uma categoria, mas é um estado de alma, percebe-se que a distinção entre essas duas pessoas impossibilita ou nega a existência de um indivíduo capaz de ser as duas coisas: o intelectual incomum e o intelectual comum ou não-intelectual.
O primeiro não tem outro amor que a sua própria mente. Não ama se não for por absoluto espaço vazio. Ele escolhe aquilo que melhor se encaixa na sua existência de intelectual convicto. Nada além de uma existência sem qualquer outro objetivo que marcar sua presença no meio que ele vive, sem a pretensão de ser imediatamente reconhecido, mas profundamente respeitado, tem importância. Esse, certamente, ganhará os limites do que pretende ser e o será do modo mais lindo possível. Ele será vencedor.
O homem que não é incomum, que é alguma coisa, mas a executa de modo não apaixonado, é um monte de coisinhas. Ele é o pai do fulano, filho de beltrano, etc. Ele é um dentre tantos médicos, enfermeiros, professores, atores, artistas, donas de casa, homem do lar, etc. Importantes, mas que não permite ao ser aquilo que não for de imediato o mais útil. O comum é comum. Ser comum não permite ser incomum.
Para ser muito incomum deve-se, portanto, ser um ser de natureza incomum. Cabe uma certa máxima, talvez preconceituosa, que classifica as pessoas segundo uma certa distinção mental de origem evolutiva, ou seja, a classificação de serem distintas em mais inteligentes e menos inteligentes. Daí, se uma pessoa inteligente/evoluída resolve ser dedicada, muito dedicada: ela se inventa intelectual/incomum.
O intelectual, porém, não deve ter a pretensão de ser comum. O intelectual é absolutamente intragável, não visível, não pode ser pai ou mãe, dedicação não pode ser dividida. O intelectual não pode ter medo de ser discriminado; a discriminação é a sua arma mais poderosa. Ele vive e existe porque é muito estranho, se não o for não poderá ser intelectual. Existe um abismo intransponível entre o comum e o incomum.
O intelectual não se zanga com os não intelectuais, com as suas limitações e classificações. Ele só classifica depois de analisar muito. Ele não precisa do mundo porque o seu mundo, ele carrega na cabeça. Ele vive enquanto puder ser apenas aquilo que quer ser, e só. Ele raramente quer aquilo que os comuns mais querem: a matéria em grandes quantidades. Ele se satisfaz em não ver nada que não lhe interessa, mas é capaz de permanecer olhando a mesma coisa durante anos. É por isso que ele não pode ser comum, não pode ter amigos do grupo comum sem ser estranho entre eles, não pode ter prazeres imediatos em larga escala, ele se contenta e fica feliz com um pouco desde que seja de profunda qualidade.
Comum a gente não precisa falar, eles estão aos montes e são muitas e muitas vezes praticamente desprezíveis (em sentido figurado), o incomum acredita na vida e na possibilidade de transformação da vida: é por isso que sempre vive e vive para sempre.

Poema em prosa do Prof. Dr. Sebastião Elias Milani: professor, linguista e excepcional poeta. 

Acessar: https://plus.google.com/111003418717896276958/posts/NCESCuvVdaa


segunda-feira, 14 de novembro de 2016

QUIMERAS: MORRER



Vi um poeta que aos berros declamava,
Declamou que a dor de estar vivo,
Somente poderia ser acalmada
Pela glória da caminhada para a morte.

Ele descrevia o mundo. Gritava alto!
Ele bradava em prantos.
Oferecia amor.
Sem mais pesar e sem tristeza, oferecia
A sua alma, que julgava desgarrada para que,
Acalmada a morte ficava,
Amar virasse hábito de todos os dias.

Ouve-se todos os dias,
Quantas vezes repetia.
— Olhem a caminhada generosa das cruzadas repetidas.

Ouve-se todos os dias:
—  Que mundo!
Ouve-se todos os dias:
—  Que mundo!

Repitas, então, se es capaz:
— O mundo caminha, implacável, e não será jamais impedido.

Caia quantos Napoleão e Hitler existirem ...
Também eles são só partes da caminhada.

Queria não estar embolado na parte vil.
Queria estar do lado que não é corrompido.
Queria estar do lado de lá, do outro lado.
Queria cantar a glória e não a dor.

Lá vai o mundo, imponderável.
Lá vai o mundo, incorruptível.
Sob o desígnio de quem criou.
— Não há razão para temer!

Oh, Anjo Augustus!
Descreva esta última quimera.
Que pantera, que nada!
Por que, se posso ver, tenho que viver?
Por que, se já sei que nada serei, tenho que viver?
Por que estou preso a este lastimável e faminto corpo?
— Deste modo sou presa fácil!

Não importa, nada importa.
Se em mil faces o mal se disfarça.
Para cada milhão de demônios vivos,
Basta um anjo encarnado ou um poeta humilhado,
Para que de novo o mundo se redima.

A cada passo concluído,
A cada fogo apagado,
Mais uma página virada do projeto infinito que o poeta ousou tentar descrever.


Poema do Prof. Dr. Sebastião Elias Milani: professor, linguista e excepcional poeta. 

Acessar: https://plus.google.com/111003418717896276958/posts/NCESCuvVdaa

domingo, 6 de novembro de 2016

Vênus

       
        

Olhai os olhos das pombas-trocazes
Tais quais lábios cobiçados pelo Âmbar
Os crisólitos, crisóprasos, nácar
As calcedônias e tigres vorazes

Nem mesmo os onixes ou as ortósias
Jaspes, turquesas, jacintos, berilos
Até os carbúnculos trazidos do Eufrates
Ou mesmo os rubis trazidos do Nilo

Nada é igual à su’alma e sorriso
Seu amor, por quem será protegido?
Ébano tenaz, diamante mirífico
           
Sábia, sensível, coração prolífico
O ouro não compra o seu pundonor
Nem jades, opalas... Deusa do amor!

Danillo Macedo



quarta-feira, 2 de novembro de 2016

A Flor e a Náusea



Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


(De  Carlos Drummond de Andrade, da antologia poética de 1962)

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O Mito


Sequer conheço Fulana,
vejo Fulana tão curto,
Fulana jamais me vê,
mas como eu amo Fulana.


Amarei mesmo Fulana?
ou é ilusão de sexo?
talvez a linha do busto,
da perna, talvez do ombro.


Amo Fulana tão forte,
amo Fulana tão dor,
que todo me despedaço
e choro, menino, choro.


Mas Fulana vai se rindo…
Vejam Fulana dançando.
No esporte ela está sozinha
No bar, quão acompanhada.


E Fulana diz mistérios,
diz marxismo, rimmel, gás.
Fulana me bombardeia,
no entanto sequer me vê.


E sequer nos compreendemos.
É dama de alta fidúcia,
tem latifúndios, iates,
sustenta cinco mil pobres.


Menos eu… que de orgulhoso
me basto pensando nela.
Pensando com unha, plasma,
fúria, gilete, desânimo.


Amor tão disparatado.
Desbaratado é que é…
Nunca a sentei no meu colo
nem vi pela fechadura.


Mas eu sei quanto me custa
manter esse gelo digno,
essa indiferença gaia
e não gritar: Vem, Fulana!


Como deixar de invadir
sua casa de mil fechos
e sua veste arrancando
mostrá-la depois ao povo


tal como é ou deve ser:
branca, intata, neutra, rara,
feita de pedra translúcida,
de ausência e ruivos ornatos.


Mas como será Fulana,
digamos, no seu banheiro?
Só de pensar em seu corpo,
o meu se punge… Pois sim.


Porque preciso do corpo
para mendigar Fulana,
rogar-lhe que pise em mim,
Que me maltrate… Assim não.


Mas Fulana será gente?
Estará somente em ópera?
Será figura de livro?
Será bicho? Saberei?


Não saberei? Só pegando,
pedindo: Dona, desculpe…
O seu vestido esconde algo?
tem coxas reais? cintura?


Fulana às vezes existe
demais: até me apavora.
Vou sozinho pela rua,
eis que Fulana me roça.


Olho: não tem mais Fulana.
Povo se rindo de mim.
(Na curva do seu sapato
o calcanhar rosa e puro.)


E eu insonte, pervagando
em ruas de peixe e lágrima.
Aos operários: a vistes?
Não, dizem os operários.


Aos boiadeiros: A vistes?
Dizem não os boiadeiros.
Acaso a vistes, doutores?
Mas eles respondem: Não.


Pois é possível? pergunto
aos jornais: todos calados.
Não sabemos se Fulana
passou. De nada sabemos.


E são onze horas da noite,
são onze rodas de chope,
onze vezes dei a volta
de minha sede: e Fulana


talvez dance no cassino
ou, e será mais provável,
talvez beije no Leblon,
talvez se banhe na Cólquida;


talvez se pinte no espelho
do táxi; talvez aplauda
certa peça miserável
num teatro barroco e louco;


talvez cruze a perna e beba,
talvez corte figurinhas,
talvez fume de piteira,
talvez ria, talvez minta.


Esse insuportável riso
de Fulana de mil dentes
(anúncio de dentifrício)
é faca me escavacando.


Me ponho a correr na praia.
Venha o mar! Venham cações!
Que o farol me denuncie!
Que a fortaleza me ataque!


Quero morrer sufocado,
quero das mortes a hedionda,
quero voltar repelido
pela salsugem do largo,


já sem cabeça e sem perna,
à porta do apartamento,
para feder: de propósito,
somente para Fulana.


E Fulana apelará
para os frascos de perfume.
Abre-os todos: mas de todos
eu salto, e ofendo, e sujo.


E Fulana correrá
(nem se cobriu: vai chispando)
talvez se atire lá do alto.
Seu grito é: socorro! e deus.


Mas não quero nada disso.
Para que chatear Fulana?
Pancada na sua nuca
na minha é que vai doer.


E daí não sou criança.
Fulana estuda meu rosto.
Coitado: de raça branca.
Tadinho: tinha gravata.


Já morto, me quererá?
Esconjuro se é necrófila…
Fulana é vida, ama as flores,
as artérias e as debêntures.


Sei que jamais me perdoara
matar-me para servi-la.
Fulana quer homens fortes,
couraçados, invasores.


Fulana é toda dinâmica,
tem um motor na barriga.
Suas unhas são elétricas,
seus beijos refrigerados,


desinfetados, gravados
em máquina multilite.
Fulana, como é sadia!
Os enfermos somos nós.


Sou eu, o poeta precário
que fez de Fulana um mito,
nutrindo-me de Petrarca,
Ronsard, Camões e Capim;


Que a sei embebida em leite,
carne, tomate, ginástica,
e lhe colo metafísicas,
enigmas, causas primeiras.


Mas, se tentasse construir
outra Fulana que não
essa de burguês sorriso
e de tão burro esplendor?


Mudo-lhe o nome; recorto-lhe
um traje de transparência;
já perde a carência humana;
e bato-a; de tirar sangue.


E lhe dou todas as faces
de meu sonho que especula;
e abolimos a cidade
já sem peso e nitidez.


E vadeamos a ciência,
mar de hipóteses. A Lua
fica sendo nosso esquema
de um território mais justo.


E colocamos os dados
de um mundo sem classes e imposto,
e nesse mundo instalamos
os nossos irmãos vingados.


E nessa fase gloriosa,
de contradições extintas,
eu e Fulana, abrasados,
queremos… que mais queremos?


E digo a Fulana: Amiga,
afinal nos compreendemos.
Já não sofro, já não brilhas,
mas somos a mesma coisa.


(Uma coisa tão diversa
da que pensava que fôssemos.)


(De  Carlos Drummond de Andrade, da antologia poética de 1962)

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Uma carniça

De Charles Baudelaire
Tradução de Ivan Junqueira.


Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos
Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,
Uma carniça repugnante.

As pernas para cima, qual mulher lasciva,
A transpirar miasmas e humores,
Eis que as abria desleixada e repulsiva,
O ventre prenhe de livores.

Ardia o sol naquela pútrida torpeza,
Como a cozê-la em rubra pira
E para ao cêntuplo volver à Natureza
Tudo o que ali ela reunira.

E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça
Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa
Chegaste quase a sucumbir.

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,
Dali saíam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso
Por entre esses trapos nefandos.

E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,
Ou esguichava a borbulhar,
Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,
Vivesse a se multiplicar.

E esse mundo emitia uma bulha esquisita,
Como vento ou água corrente,
Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita
E à joeira deita novamente.

As formas fluíam como um sonho além da vista,
Um frouxo esboço em agonia,
Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista
Apenas de memória um dia.

Por trás das rochas irrequieta, uma cadela
Em nós fixava o olho zangado,
Aguardando o momento de reaver àquela
Náusea carniça o seu bocado.

- Pois hás de ser como essa infâmia apodrecida,
Essa medonha corrupção,
Estrela de meus olhos, sol de minha vida,
Tu, meu anjo e minha paixão!

Sim! tal serás um dia, ó deusa da beleza,
Após a benção derradeira,
Quando, sob a erva e as florações da natureza,
Tornares afinal à poeira.

Então, querida, dize à carne que se arruína,
Ao verme que te beija o rosto,
Que eu preservei a forma e a substância divina
De meu amor já decomposto!


Postagem em destaque

Ela e Ele

Declamação para o dia da poesia, TV UFG: https://www.youtube.com/watch?v=D1peN0HQtAE Acabei por achar sagrada a desordem do meu espíri...